Maria Bethânia
Amor Festa Devoção ao Vivo
Biscoito Fino
Maria Bethânia tem lá seus rituais, santos e orixás. Mas completa 45 anos de carreira devotada a seu próprio universo musical, hoje mais interiorano e menos dramático, como sinaliza o CD duplo ao vivo que registra na íntegra o show Amor Festa Devoção, gravado em março, em duas apresentações no Rio de Janeiro. Tributo à centenária Dona Canô, mãe da cantora, o show conjuga tons amorosos e festivos ao agregar no roteiro os repertórios dos álbuns Tua e Encanteria, lançados em 2009. Ainda senhora da cena, aos 64 anos, Bethânia irmana modas de viola, canções românticas e sambas de roda com a autoridade de quem já consegue dominar a voz, diamante bruto, mas verdadeiro, lapidado ao longo destas décadas. Com soberania, essa voz teatral encara pela primeira vez músicas como “Dama do Cassino” e “Queixa” (ambas do mano Caetano), além da trágica “Balada de Gisberta”, da lavra do roqueiro português Pedro Abrunhosa, ápice do roteiro que reitera dramas já recorrentes nos shows da intérprete. Contudo, mesmo no drama, os tons já são mais amenos, interiorizados. Escorada na sua presença cênica e na sonoridade precisa de banda mais enxuta, capitaneada pelo fiel escudeiro e maestro Jaime Além, Bethânia molda atmosfera de intimidade para cantar os amores de seu Brasil caboclo, evocado tanto num congado como “Estrela”, do subestimado mineiro Vander Lee, como na melancólica toada “Saudade” (Chico César e Moska), exemplo de um som rural mais refinado, corajosamente irmanado em cena pela senhora com o sertão populista de duplas como Bruno & Marrone (“Vai Dar Namoro”) e Zezé Di Camargo & Luciano, de quem rebobina “É o Amor”, canção pueril, mas bela, que Bethânia teve a salutar ousadia de cantar pela primeira vez em álbum de 1999, no mais controvertido registro de discografia na qual os discos ao vivo são recorrentes desde os anos 60, décadas antes de o formato ditar as regras do mercado fonográfico. Com 42 músicas e textos distribuídos em 36 faixas, Amor Festa Devoção ao Vivo dribla qualquer traço de redundância, porque a maior parte do roteiro perpetuado no CD duplo nunca tinha sido registrada ao vivo pela intérprete. Somente o festivo bloco final, com o já batido samba “O Que É O Que É” (Gonzaguinha) e com “Reconvexo” (Caetano Veloso), soa déjà-vu. Mas aí já é tarde, pois o ouvinte-espectador já se deixou envolver pela teia de emoções que Abelha Rainha – epíteto cunhado por Gilberto Gil nos anos 80 – foi cerzindo ao longo do disco-show com fios novos (“Fonte”, “Você Perdeu”, “É o Amor Outra Vez”) e antigos (“Curare”, “Bandeira Branca”, “Serra da Boa Esperança”). E a costura resulta tão fina que nem se percebe que Bethânia traz para sua festa compositores tão díspares quanto Vinicius de Moraes (“Serenata do Adeus”) e Arnaldo Antunes (“Até o Fim”, destaque do cancioneiro romântico do álbum Tua). É que discos ao vivo são retratos mais fiéis do canto dessa intérprete que se agiganta no palco em movimentos cíclicos que renovam o que, a rigor, já não é tão novo. “Viro, balanço, reviro na palma da mão o dado / Futuro presente passado”, dá a pista Bethânia ao recitar o poema “Olho de Lince”, de Waly Salomão (1943–2003). Reproduzidos solitariamente no luxuoso encarte do CD duplo, os versos de Waly ajudam a decifrar (um pouco) essa esfinge que se autoperfila no samba “Feita na Bahia”, de Roque Ferreira, o compositor mais recorrente nos últimos trabalhos de Bethânia, intérprete já predestinada a cantar assim, entre a paixão e o enigma, com total devoção a si mesma.
POR MAURO FERREIRA