2ª temporada de Os Ímpares homenageia 'pedras fundamentais da música brasileira'
Segunda temporada da série conta com releituras feitas por nomes como Xande de Pilares, Roberta Sá, Otto e BNegão e participação de David Byrne
Pedro Figueiredo (@fedropigueiredo)
Publicado em 10/02/2025, às 09h00
A música brasileira viveu um momento de modernização entre as décadas de 1960 e 1980, que ecoa até hoje. Muito do que ouvimos é influenciado por nomes que surgiram nesse período, apesar de nem tudo ter tido projeção que merecia. Esse é o fio condutor da série Os Ímpares (2019), que em 2025 ganha uma segunda temporada no canal Curta!.
A série é uma realizada pela Das Minas Produtora e Idealizada por Henrique Alqualo, Isis Mello, diretores da série e Felipe Pinaud, responsável pela direção musical, a segunda temporada da atração começou a ser produzida em 2022, mas as conversas para uma extensão do programa tiveram início logo após a conclusão da primeira temporada, relembra Alqualo em conversa com a Rolling Stone Brasil. "Começamos a pensar em curadoria, novos artistas logo depois, mas botar a mão na massa mesmo foi em 2022."
O processo de curadoria busca evidenciar "pedras fundamentais da música brasileira," como classifica o diretor. Um dos objetivos da curadoria feita pelo trio é levar para novas gerações músicas e artistas que que fizeram história nas vozes de cantores que seguem esses passos nos dias atuais.
"No meu ponto de vista, os discos são os verdadeiros protagonistas da série," diz Pinaud. "O intuito é trazer para discussão e lembrar todos de uma produção musical que foi feita nas décadas de 1970 e 1980 e não teve o devido reconhecimento no primeiro momento, mas que depois teve seu lugar de destaque e reconhecimento, seja do público, da crítica ou até de um nicho."
Isis ressalta que popularizar esses trabalhos é também uma preocupação do projeto. "A Rita Lee, por exemplo, é uma cantora super popular, mas poucas pessoas conhecem o Build Up (1970). Quem conhece, sabe da importância, mas a gente queria trazer isso para o público, que às vezes é até fã dela, mas esse disco específico, como foi o primeiro, ela ainda era d'Os Mutantes e a sonoridade é meio Mutantes e meio Rita hitmaker, é muito interessante."
Eu sempre fico pensando sobre o que é o sucesso. Vender muito é o sucesso? Porque o disco da Dona Ivone Lara, o Sorriso Negro (1981) não vendeu, mas é um dos pilares do samba. Então o que é o sucesso? Por que alguns discos não bombam? - Isis Mello
A curadoria
Para chegar nos discos que integram a segunda temporada do programa, uma pesquisa foi feita ao longo dos anos. A partir de uma pré-curadoria, eles entenderam que seria interessante trazer mais compositoras do que primeira temporada apresentou. "Chegamos nesse lugar em que temos quase meio a meio de homens e mulheres. E tem um pouco de escolha pessoal, com um pouco da importância do álbum. Fizemos a seis mãos, eu, Pinaud e Isis," explica Alqualo.
Alguns discos que estavam sendo sondados para a primeira temporada acabaram ficando para a segunda. "O Pinaud trouxe também umas ideias novas e ficamos escutando discos e tentando licenciar," explicou Isis sobre a questão dos direitos autorais. Alguns artistas que os diretores gostariam de trazer para o projeto acabaram ficando de fora, como os Tincoãs, Cassiano e Cátia de França — que adoraríamos ver em uma terceira temporada.
A diretora destaca com um dos momentos mais legais do projeto as reuniões feitas por eles, nas quais ouviam os álbuns e selecionavam as músicas que poderiam ser regravadas para o programa. Era um período no qual conheciam novos artistas e discos.
Os nomes dos artistas convidados para regravar as canções surgiram a partir de dois critérios: relação entre os artistas, como foi o caso de Odair José e Otto, e sonoridade, como aconteceu com Clara Buarque, que regravou Sueli Costa. "A gente ligava na cara de pau e propunha. Alguns aceitaram e alguns não," relembra Isis.
Eles contam ainda que quando os artistas chamados para regravar as obras não as conhecem, há algo de interessante também. Foi o cado de Xande de Pilares, que não estava familiarizado com a obra de Sonia Santos antes do convite e, depois de participar do projeto, passou a ouvir o trabalho dela.
O programa ainda permite que os artistas explorem sua criatividade em torno das obras retratadas. Foi o que aconteceu com o rapper Edgar, convidado para regravar Sueli Costa, que escreveu um rap em com da temática da canção "Amor Amor". O mesmo aconteceu com Caio Prado, que regravou Tom Zé e Jonathan Ferr, que participa do episódio dedicado ao Trio Mocotó.
Eles tiveram liberdade total de se apropriar da canção. Alguns foram por um caminho de homenagem, de tocar a música mais do jeito que ela é, mas a própria interpretação do artista já fazia com que a canção tivesse outra cara que não de um cover. Outros piraram, foram por um caminho diferente, transformaram o ritmo, gênero, melofia, harmonia, tudo! E essa é a proposta do programa mesmo. - Felipe Pinaud
O diretor musical explica que mostrar o processo por trás das gravações é parte importante da estética da série. "Faz parte da nossa linguagem mostrar como funciona o estúdio, como surgem as ideias, é parte do nosso programa para além das releituras," completa Alqualo.
As gravações eram feitas com dois artistas por dia, mas os diretores fazem questão de ressaltar como a equipe altamente engajada foi essencial para o sucesso do projeto. "Foi o tempo inteiro um clima leve e legal de trabalho," relembra Isis.
O trio ainda destaca o trabalho de Léo Moreira, mais conhecido como Shogun, engenheiro de som que está no programa desde a primeira temporada - assim como boa parte da equipe - e é "uma atração a parte," como brinca Isis. "Todo mundo conhece ele, quando os músicos chegavam, ficavam super feliz que ele estava lá."
"Nós tínhamos dois sets em paralelo, um de entrevista e outro de música. E a gente ainda tinha um negócio que nós chamamos de invasão, que a gente chamou alguns compositores para irem lá na hora em que os artistas estavam gravando de surpresa." Foi o que aconteceu com Antônio Carlos & Jocafi, que surpreenderam BNegão, por exemplo.
O programa foi gravado na Cia. dos Técnicos Studios, no Rio de Janeiro, onde costumava ser o estúdio da RCA, onde diversos artistas gravaram, alguns deles retratados no programa. "Tem uma história que o estúdio foi feito para Antonio Carlos & Jocafi gravarem o disco aqui no Rio," relembra Henrique.
Participação ilustre
Além de retratar verdadeiras lendas da música nacional, a segunda temporada de Os Ímpares conta com uma entrevista com o fundador dos Talking Heads, David Byrne, que participa do episódio dedicado a Tom Zé.
"A gente sabia que ele tinha uma história com o Tom Zé, aí pensamos que seria legal ele participar," relembra Alqualo, que tentou contato com o músico a partir de alguns telefonemas sem sucesso. Depois, através de um amigo que morou com o músico Stephane San Juan — que já tocou com Byrne — as coisas aconteceram.
San Juan participou da primeira temporada e a partir disso Pinaud entrou em contato com ele. "Mandei uma mensagem para ele e perguntei se o David não topava dar um depoimento. Ele topou," conta o diretor musical.
Homenageados
Se Os Ímpares proporciona à audiência a descoberta de artistas e canções, para os homenageados o programa tem um sabor especial. É o caso do duo Antônio Carlos e Jocáfi, que tiveram o álbum Mudei de Ideia (1971) retratado em um dos episódios da segunda temporada. A dupla contou que o convite os deixou alegres.
"Eu acho esse o nosso melhor álbum, sempre achei," revela Antônio Carlos "Porque ele tem a nossa essência, aquela essência baiana, sabe? Ainda não tinha gravadora no meio, sucesso que leva o cara para outros caminhos, então ele é a gente quando começou."
Para a série foram regravadas as faixas "Deus o Salve" e "Você Abusou", com BNegão e Jota.pê, respectivamente. "Eram exatamente aquelas que tinham importância no trabalho que a gente vinha desenvolvendo, que era o trabalho afro," explica Jocafi.

O efeito do programa, de levar nomes da música para novas gerações, já é conhecido pela dupla, em 2003 Marcelo D2 lançou o hit "Qual É?" com um sample de "Kabaluerê" da dupla, o que os tornou conhecidos para uma nova safra de fãs quando a canção foi lançada. "Até então, nosso público era o de antigamente, que gostava de samba."
Os dois ainda fazem questão de ressaltar o trabalho da produtora Márcia Melchior e de Russo Passapusso — com quem eles lançaram em 2022 o álbum Alto da Maravilha — como pessoas responsáveis por levar sua obra adiante.
Convidados
O pernambucano Otto é um dos artistas que aparece na temporada com uma releituta de "O Sonho Terminou", canção de Odair José presente no disco O Filho de José e Maria (1977). O convite partiu de Pinaud e o cantor se lembra de ter estado com o compositor — de quem é amigo — uma semana antes da gravação.

"Eu gosto muito da pessoa dele, do que ele representa e foi isso. Me convidaram, falei um pouco com ele e ele disse que a música é minha cara," relembra o cantor, que compartilha da opinião do amigo.
A amizade entre os artistas surgiu no programa Altas Horas, em um especial que homenageava o artista goiano. Desde lá ele passou a ser um dos compositores mais gravados por Otto. Ele relembra como o artista eram um ídolo durante sua infância. "Ele sempre me trouxe uma parada misteriosa, emblemática."
Quando eu vi Ramones pela primeira vez eu pensei 'pera aí, Odair José já era assim'!
Para o cantor, o valor político da música de Odair é muito importante, especialmente pela maneira como ele escrevia enxergando o povo. "Eu gosto dessa música popular meio malandrona, meio rock and roll."
A cantora Roberta Sá também integra o time de artistas que entrega releituras nesta temporada de Os Ímpares. Ela apresenta uma versão do clássico "Alguém Me Avisou", de Dona Ivone Lara. Ela conta que suas referências sempre estavam mais ligadas a compositores homens, enquanto as mulheres estavam mais ligadas à interpretação.
"Quando eu descobri que a Dona Ivone era compositora daqueles sambas, eu descobri que mulher também compunha," conta a artista, que considera que essa foi uma maneira de portas serem abertas para compositoras que vieram depois.

Essa não é a primeira vez que Roberta regrava uma composição de D. Ivone. A canção gravada para o programa, por exemplo, já recebeu uma interpretação para o projeto Sambasá. Em Os Ímpares, a versão fica ainda mais especial, com a sambista acompanhada por uma banda exclusivamente feminina.
Para a cantora, há discos que estão em nossas vidas desde sempre, como é o caso de Sorriso Negro (1981). E se o tempo às vezes esconde uma pérola ou outra, temos a sorte de um projeto como Os Ímpares nos lembrar da força da música brasileira.